
Evitar gastar energia à toa é um tipo de comportamento que está bem incorporado em muitos de nós. Eu me lembro bem de quando era criança e meus pais ficavam atentos, e brigavam comigo, sempre que eu deixava uma luz acesa ou algum eletrônico ligado sem uso. Me lembro também de uma vez que a conta de água estava vindo muito cara e na investigação meu pai descobriu que o vilão era um vazamento escondido. Todos somos educados a olhar para estes gastos de energia mais visíveis e evitá-los a todo custo.
Em meus dias atuais, percebo que este aprendizado me ajudou a gerenciar com facilidade não apenas os gastos energéticos da minha casa, mas também da vida de modo geral. Um entendimento que ajuda a poupar energia física e até mental na vida corrida do adulto. Mais ainda, esse é um conhecimento que pode facilitar a compreensão de um conceito de desperdício de energia muito relevante para a saúde das empresas.
Nas duas últimas semanas me deparei com situações parecidas no meu trabalho. Em um dos casos, ouvi da área de recursos humanos os desafios e resistências no processo de implantação de uma nova estrutura organizacional. A queixa era direcionada para alguns líderes pouco atentos ao seu papel no processo. Em outro caso, a reclamação era do próprio diretor da organização, apresentando seus desafios em obter os resultados desejados por conta da incapacidade de seus gerentes de se comunicarem adequadamente em um projeto. Para completar, tive uma conversa com uma cansada equipe de RH que se ressentia da dificuldade de implantar certas mudanças decisivas aguardadas por anos.
O que estes casos têm em comum?
Energia sendo desperdiçada.
Sabe aquela água vazando ou a TV ligada sem necessidade?
Quando uma equipe age a partir de prioridades que não estão alinhadas com um resultado claro e compartilhado, mesmo sem perceber, desperdiça energia em ações que não contribuem para os objetivos da organização, área ou projeto. Esse fenômeno tem nome e sobrenome: entropia cultural.
O que é entropia cultural?
O termo tem origem na termodinâmica e pode ser simplificado como a medida da desordem ou da distribuição de energia em um sistema, especialmente a quantidade de energia que não pode ser convertida em trabalho útil. Quando um sistema tem alta entropia, a energia está mais espalhada e menos disponível para realizar o trabalho que importa.
Já o termo entropia cultural foi difundido por Richard Barrett, que já citei em alguns outros artigos aqui. Neste caso, se refere ao desperdício da energia das pessoas dentro das empresas em trabalho, atividades e tarefas dissociadas de um objetivo principal. Em geral, essa energia é direcionada para solucionar os entraves produzidos pela própria organização, sua cultura, modelos de gestão e governança.
A entropia pode ser entendida como um indicador da saúde da cultura de uma empresa e pode ser medida a partir do entendimento de que os valores que sustentam as prioridades das pessoas podem estar desalinhados ou desequilibrados. Ou seja, podem estar direcionados para aspectos limitadores do progresso da empresa ou serem aplicados em uma medida que não atende as necessidades do contexto da organização.
A entropia cultural acontecendo na prática
No primeiro exemplo que dei, a liderança em questão está operando a partir do valor do controle e do orgulho. Valores que limitam sua capacidade de facilitar os processos de mudança e, além disso, os impedem de reconhecer que precisam renunciar a práticas e hábitos, que apesar de terem sido positivos até certo ponto, não fazem mais sentido.
Isso alimenta a entropia cultural porque faz com que a equipe tenha que gastar energia enfrentando esse cenário de pouca segurança psicológica e muita politicagem. As pessoas tendem a se proteger, fazer perguntas demais, evitam correr riscos e podem até desistir de avançar até perceber que é seguro. Pense como toda essa energia poderia estar sendo direcionada para a efetiva implantação do projeto.
É este o problema da entropia cultural, ela tira energia do rumo adequado e a joga fora, como aconteceu lá na minha casa com o vazamento de água.
Nos outros dois exemplos, podemos ver a mesma situação. Ou o comportamento das lideranças se baseia em valores que limitam a capacidade das pessoas de entregar uma “energia limpa” para o trabalho a ser feito, ou a estrutura da organização e seu conjunto de “regras ocultas” funcionam como barreiras para essa energia.
O mais complicado aqui é que assim como a água e a energia elétrica desperdiçadas, a entropia cultural não tem retorno, nem cashback. Essa energia liberada para sobreviver aos entraves burocráticos, armadilhas culturais e politicagem não só não volta como ainda cria cicatrizes na coragem e disposição das pessoas. O que aumenta a necessidade de esforço para recuperar o engajamento e motivação da equipe no futuro.
Faça o teste: Quando alguém lança um projeto novo em sua empresa, como as pessoas reagem à iniciativa? Elas se alegram por saber que alguma mudança positiva virá ou olham torto por acharem que será mais um projeto com excelente discurso e planejamento, mas uma implantação para inglês ver? A segunda alternativa é umas das evidências das cicatrizes deixadas pela entropia cultural alta.
O impacto da entropia no engajamento e resultados
O maior impacto da entropia cultural, sem dúvidas, está na forma como corrói o engajamento e motivação das pessoas. Não há muito o que se discutir sobre o impacto devastador de uma equipe sem engajamento para os resultados no longo prazo, mas duas pesquisas realizadas por empresas respeitadas demonstram a conexão entre resultado e engajamento.
A Gallup realizou uma meta-análise envolvendo 339 estudos, cobrindo 230 organizações e mais de 82 mil unidades de trabalho, abrangendo cerca de 1,88 milhão de funcionários. Os resultados demonstram que o engajamento dos funcionários está fortemente associado a maiores níveis de produtividade, lucratividade, retenção de funcionários e satisfação dos clientes.
O estudo revelou que unidades de trabalho com alto engajamento tiveram significativamente melhores desempenhos em comparação com aquelas com baixo engajamento, destacando a importância de boas práticas de gestão para aumentar o engajamento. Para mais detalhes, você pode conferir o relatório da Gallup aqui.
Outro estudo conduzido pela London School of Economics (LSE) em parceria com o Chartered Institute of Personnel and Development (CIPD) analisou dados de mais de 5.000 funcionários e gerentes de várias organizações. Esse estudo indicou que níveis elevados de engajamento estavam associados a maior inovação, melhor desempenho e um desejo mais forte de permanecer na empresa.
Já níveis baixos de engajamento foram relacionados a comportamentos prejudiciais, como absenteísmo. Além disso, as práticas de gestão de recursos humanos se mostraram cruciais para promover o engajamento e, assim, melhorar o desempenho individual e organizacional. Você pode ler mais sobre esse estudo aqui.
Como reduzir a entropia cultural?
Quando meu pai viu o vazamento de água, ele trocou o encanamento e o vazamento parou. Quando minha mãe brigou comigo porque deixei a TV ligada, bastou desligar e o desperdício de energia cessou. Com a entropia cultural não é tão simples assim, justamente porque quanto maior a entropia cultural alcançada por uma empresa, mais esforço será necessário para convencer as pessoas de que sua energia não será mais desperdiçada no futuro.
O principal trabalho a ser feito para reduzir a entropia cultural é saber direcionar a energia das pessoas de forma correta. Ou seja, tirar da frente aquilo que impede essa energia de fluir rumo ao cumprimento de metas e resultados. Quanto mais barreiras criamos para o trabalho das pessoas, mais entropia geramos. E é neste ponto que muitos líderes se tornam mais obstáculos do que facilitadores.
O controle, a centralização e a competição excessiva são exemplos de barreiras para o bom uso da energia das pessoas. A falta de clareza sobre papeis e autonomia, os silos demarcados, a politicagem expressada por relações de baixa confiança e a falta de coesão entre lideranças também impedem a energia de fluir adequadamente, gerando entropia.
Cabe aos líderes analisarem de forma criteriosa o que tem sido entrave para o fluxo natural da energia das pessoas e eliminar estes obstáculos de modo que a energia seja usada para cumprir metas e resultados, e não para solucionar quebra-cabeças políticos e culturais do negócio.
Valores são antídotos para a entropia cultural
Um outro jeito de reduzir a entropia é cultivando valores virtuosos. Se a entropia pode ser causada por assumir prioridades limitantes, os valores são seu exato oposto. Ao incentivar de forma exemplar e consistente a incorporação de comportamentos baseados em valores corporativos alinhados ao propósito e objetivos da organização, cria-se um ambiente onde o referencial da decisão não é mais o desejo de um indivíduo, mas um símbolo acordado coletivamente.
Em um dos exemplos que citei no início do texto, a diretora de uma empresa de médio porte buscava um treinamento para melhorar a comunicação entre os gerentes de sua divisão. Sua queixa era a de que eles não sabiam se comunicar e por isso estavam gerando entraves no atendimento das demandas dos clientes. Na sua visão, um treinamento de técnicas de comunicação resolveria o problema.
Ao analisar de forma mais profunda o cenário, ficou claro que, na verdade, a própria estrutura e processos da empresa eram desenhados de tal maneira que colocavam esses gerentes em um sistema de enfrentamento e competição. O que de maneira silenciosa comprometia a qualidade de sua comunicação. Ou seja, gastavam mais energia se protegendo um do outro do que se comunicando abertamente sobre os problemas e demandas do cliente.
A entropia alta aqui tem origem no fato de que essa estrutura e processos foram concebidos a partir de uma mentalidade e valores desalinhadas com as necessidades reais do negócio. No fim, as pessoas eram pouco incentivadas pelo próprio sistema a colaborarem, o que além de jogar energia boa fora, produziria ainda mais desperdício na contratação de um treinamento de comunicação que geraria pouco engajamento e provocaria quase nenhuma mudança.
Neste artigo, escrevo um pouco mais sobre como cultivar uma cultura baseada em valores. Caso queira se aprofundar neste tema especialmente.
Libere a energia e o potencial das pessoas
Gerenciar a cultura organizacional passa por compreender que as pessoas, individualmente, não são as únicas responsáveis pelos comportamentos que se repetem diariamente nas empresas, mas também as estruturas nas quais elas operam. Ou seja, as políticas, modelos e métodos de trabalho configuram um modo de funcionamento que pode induzir e incentivar comportamentos inadequados e indesejados.
E quanto mais essa infraestrutura invisível do negócio se torna um obstáculo para o trabalho, maior será a entropia cultural e, como consequência, menor será o engajamento e pior o desempenho das pessoas. Para obter o melhor das pessoas, comece observando e diminuindo a entropia gerada pela sua empresa e, certamente, verá um novo tipo de energia.
Reduzir a entropia cultural é um esforço contínuo que passa por revisar estruturas, questionar práticas e, acima de tudo, cultivar valores que impulsionem o crescimento coletivo. É entender que cada barreira removida é uma oportunidade de canalizar a energia das pessoas para a criação de algo maior, algo que gere valor para todos.
Quando a cultura organizacional permite que as pessoas direcionem sua energia para o que realmente importa, não estamos apenas aumentando o desempenho, estamos liberando o potencial humano para criar resultados extraordinários e sustentáveis, movendo a empresa para frente com propósito e vitalidade renovada.
Anderson Siqueira é fundador e educador na Consense, especialista em desenvolvimento organizacional, governança e cultura corporativa.