Estamos isolados fisicamente, mas continuamos trabalhando e, de uma forma ou de outra, já podemos sentir os efeitos deste novo normal. A cena é parecida para muita gente: A mesa cheia de pastas, computador e cadernos. A cozinha com mais louça do que o normal. Crianças e adolescentes entediados pela casa. Gatinhos, cachorros e até papagaios fazendo a alegria das videoconferências. Lives, mais lives e postagens (já falei das lives?).
Muitos de nós já começamos a refletir sobre questões que não estavam muito em voga e possíveis decisões também já começaram a ser tomadas. Já ficamos sabendo sobre o aumento de divórcios na China, mas também sobre o possível aumento populacional como efeito da quarentena. Já tivemos o dia extremamente produtivo e também já passamos a tarde inteira no sofá. E tenho certeza que você também já se confundiu sobre qual é o dia da semana.
O fato é que, de um jeito ou de outro, todos nós teremos que passar e viver os efeitos deste novo normal.
Porém, existe alguém com quem você terá de conviver ainda mais nesta quarentena. Uma pessoa que, no meio de tanto trabalho, muitas vezes, se tornou invisível e pouco ouvida. Alguém, que nem sempre é protagonista da própria vida, mas que tem o único papel que importa nesta história. Você já sabe quem é, né? Pois é: você mesmo. Pode ser que você ainda não tenha notado, mas estar na própria companhia pode ser tão desafiador quanto todos os outros desafios que o isolamento deste novo tempo pode causar.
Deparar-se com suas crenças sobre as coisas, pessoas e organizações. Interagir com seus medos e ansiedades diante de um cenário tão novo e amedrontador. Perceber-se decidindo e julgando questões tão grandiosas, como a colaboração entre as pessoas, a saúde global e o modelo de vida que adotamos como sociedade. E até reconhecer potenciais que não eram conhecidos.
Tudo está em questão, e o centro deste grande processo de decisão é você. E, caso esteja sozinho em casa nesta quarentena, este pode ser o período mais longo em sua própria companhia.
Brené Brown (conheça mais dela, aqui), no livro A Coragem de ser imperfeito, fala sobre como o isolamento pode ser prejudicial para nossa saúde mental e social. O Interessante é que ela não está falando sobre a quarentena atual, mas de um isolamento em situações de normalidade, ao qual nos submetemos todos os dias, mergulhados em nossas próprias vidas e problemas, sem espaço para o outro, por diversos motivos.
Ela destaca, porém, que “somos seres programados para criar vínculos”. Com isso, é possível concluir que um isolamento como este que estamos vivendo pode aumentar ainda mais o sofrimento e, em alguns casos, ser até perigoso para a saúde.
A questão é que, muitas vezes, nos ignoramos. Não ouvimos nossos próprios sinais de sofrimento ou fingimos não sentir nada. Os motivos podem ser os mais variados, mas muitos de nós acreditamos que expor nossos sentimentos, medos e inquietudes é uma grande fraqueza e, baseados neste mito, ampliamos a própria sensação de isolamento e vergonha. Ou, ávidos pela alta performance e pelo perfeccionismo, mergulhamos em uma maratona de reflexões, questionamentos e demandas. O vicio tão familiar de evitar a solidão de estar consigo mesmo.
Jennifer Louden, coach de crescimento pessoal americana, chama isso de “sombras de alívio”. É quando ansiosos, isolados psicologicamente, vulneráveis, solitários e nos sentindo impotentes, a bebida, a comida, o trabalho e as horas infindáveis na internet parecem nos confortar, mas, na verdade, estão apenas lançando sombras sobre nossa vida.
Pode ser a oportunidade que nos faltava para estarmos genuinamente no centro de nossas perspectivas. Não de um jeito egocêntrico e mimado, mas com um olhar protagonista de quem busca sua verdade e essência nesse mar de versões de si mesmo, criadas para interagir com um mundo abarrotado de informações, demandas, desejos e palavras de ordem.
Entretanto, vale lembrar que você não está sozinho nessa. É possível que ninguém tenha imaginado que no auge da conexão global viveríamos um momento de tamanho isolamento. E justamente por isso, podemos ver este momento como uma grande oportunidade de resgate e mudança. Um período em que novas ideias podem ser produzidas, decisões adiadas podem ser finalmente tomadas e, quiçá, grandes transformações sociais podem emergir.
Um período em que possamos ainda nos colocar em perspectiva, analisar nossas vidas por uma nova ótica, permitindo que hábitos e comportamentos sejam questionados e mudados. Refletir sobre o tempo com trabalho, família e amigos. Os gastos, o consumo e o padrão de vida. Abrir os olhos para realidades sociais não conhecidas ou ignoradas.
Um convite à reflexão, sim, mas também um convite ao ócio, ao estado de completa companhia de si, sem ruídos ou objetivos e metas. Aquele lugar para onde somos chamados há muito tempo, mas, pelo motivo que for, insistimos não ir. Um tempo de qualidade para encontrar, em nossa companhia, a verdade que realmente importa sobre nós mesmos.
Para viver neste novo normal será necessário coragem e disciplina, sem dúvida.
Coragem para olhar para si, encarar de frente o espelho e dialogar de forma generosa, empática, honesta e íntegra. E disciplina, já que não existe progresso sem organização e método. É preciso ser discípulo de si mesmo em primeiro lugar para alcançar resultados efetivos na vida. E vamos precisar disso nos próximos meses.
Este é um artigo-lembrete sobre a importância de decidir conscientemente o que fazer deste tempo de isolamento. O resto cabe a você. Uma das minhas frases favoritas de Carl Jung diz que nossa “visão se tornará clara somente quando olharmos para nosso próprio coração, pois quem olha para fora, sonha, mas quem olha para dentro, desperta.”
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Anderson Siqueira é CEO e fundador da Consense educação para as relações, especialista em psicologia organizacional e governança corporativa.