Se você não está disposto a aceitar a dor que viver valores pode causar, não se empenhe em formular uma declaração de valores.
Uma pesquisa realizada pela Table Group, especialista em desenvolvimento de líderes, constatou como a definição de valores nas empresas pode cair no lugar comum. Apesar de ser vista como uma das mais importantes ações de diferenciação e cultura, poucas empresas se dedicam ao profundo trabalho de escolher valores realmente conectados com o que são e aspiram ser. E, mais ainda, ao árduo trabalho de cultivar tais virtudes na organização.
Um exemplo está na lista de valores mais comuns: integridade, trabalho em equipe, ética, qualidade, satisfação do cliente e inovação. 55% de todas as empresas Fortune 500 afirmam que a integridade é um valor fundamental, 49% defendem a satisfação do cliente e 40% defendem o trabalho em equipe…
Embora não existam dúvidas de que essas palavras são boas, tais termos dificilmente fornecem um caminho claro para o comportamento do empregado. Mais ainda, a própria publicação da Fortune declara que “embora esses valores sejam encontrados em quase todos os lugares, certamente não é o caso de eles serem vividos com sucesso”. Uma lista que não diferencia uma empresa da outra; pelo contrário, fazem-na desaparecer na multidão.
Mas, então, como pensar em valores que de fato inspirem o melhor do comportamento e, além disso, estabeleçam pilares sólidos e diferenciados para a cultura da empresa?
A resposta para essas perguntas pode estar na compreensão adequada do que é um valor, no entendimento de que existem categorias diferentes de valores e, claro, no árduo trabalho de cultivar essas virtudes dentro da organização.
Mas por que eu preciso disso na minha empresa?
Primeiramente, é preciso entender que a criação de uma declaração de valores nada tem a ver com uma estratégia de marketing ou de identidade visual. Apesar de comum, essa é uma das maneiras mais rápidas de incorrer ao campo comum citado pela pesquisa da Table.
Uma declaração de valor deve ser encarada como o conjunto de símbolos que orienta um determinado grupo de pessoas a agirem de determinada maneira. Ela revela quais são [ou devem ser] as premissas utilizadas para tomar as decisões diárias, simples ou difíceis. E, por isso, deve ser pensada com cuidado e com profundidade.
Estes princípios devem guiar as escolhas de uma empresa em todos os campos, por exemplo, sobre quais oportunidades de negócio devem ser perseguidas ou rejeitadas, sobre quais investimentos devem ser feitos ou não, e sobre quais comportamentos “combinam” com aquela comunidade de trabalho ou não.
À medida que são internalizados pelos colaboradores, os valores e princípios podem substituir regras mais impessoais ou coercitivas. Eles podem servir como um sistema de controle contra violações, excessos ou desvios do curso. E tudo isso de uma maneira contrária às políticas tradicionais, pois se conectam com o desejo das pessoas de se tornarem melhores.
Entendendo os diferentes tipos de valores
Uma das grandes dificuldades das empresas na criação de sua declaração de valores está no fato de existirem dúvidas entre escolher valores que já expressam um comportamento comum da organização ou escolher os que ainda não são, mas que precisam ser alcançados.
Tome como exemplo um dos clientes aqui da Consense, que durante uma discussão com outros líderes afirmou que era necessário incluir a empatia como um dos valores da empresa. Seu argumento era o de que a relação com o cliente era ruim por que as pessoas não eram empáticas. Em outro caso, oposto, definiu-se “felicidade” como um valor por representar um traço inegável de comportamento compartilhado por aquele grupo.
Faça o teste, repasse cada um dos valores de sua empresa e reflita: este valor já é uma marca do nosso comportamento ou é um desejo nosso? Uma aspiração? O problema dessa pequena confusão é que ela deixa as lideranças e as pessoas desnorteadas sobre o que fazer de fato.
Para entender os diferentes tipos de valores vamos usar o modelo do especialista em desenvolvimento organizacional Patrick M. Lencioni, autor do livro Os cinco desafios das equipes. Segundo Lencioni, existem quatro categorias de valores:
- Valores centrais: são princípios inegáveis e indiscutíveis, que tornam a empresa positivamente única. É possível que não sejam encontradas palavras comuns para descrever essa categoria de valores, pois é nela que se encontram as definições mais singulares da cultura de uma organização. É comum estarem associados ao comportamento dos fundadores e receberem apelidos, como o “Jeito HP”, da Hewlett-Packard.
Porém, nada impede que tenha se tornado sólido pelo empenho efetivo da organização, como é o caso de um cliente da Consense, conhecido por todos por sua hospitalidade e alegria no atendimento. Uma marca que não apenas o diferencia, mas o torna único. Um conjunto de virtudes core, estrutural e até sagrado.
- Valores aspiracionais: aqui estão aquelas virtudes desejadas pela organização. São objetivos a serem alcançados por algum motivo, estratégia ou desejo cultural. Um cliente nosso, por exemplo, mobilizou anos de trabalho no cultivo do valor “inovação” por ter percebido em um determinado momento que a empresa estava estacionada no tempo.
Essa categoria de princípios está muito ligada às empresas que desejam promover algum tipo de transformação cultural, criar novos produtos ou entrar em novos mercados. A pergunta aqui é: quais virtudes apoiariam tais empreitadas?
Vale ainda tomar cuidado com a compatibilidade entre os valores aspiracionais e os valores centrais. Qualquer assimetria neste sentido pode gerar confusão e enfraquecer a cultura da organização. Anos de trabalho e muito esforço podem transformar valores aspiracionais em centrais.
- Valores básicos: Aqui está a categoria de valores de base, ou seja, o mínimo exigido para ser parte do time. Não se deve confundir os valores básicos com os valores centrais. A principal diferença está no fato de os valores básicos não criarem diferenciação entre as empresas. Pelo contrário, eles as aproximam.
Por exemplo, os valores mais comuns das empresas da Fortune podem ser classificados como valores básicos. Isto por que raras as empresas que poderiam declarar que possuem uma forma incomum de viver a “integridade”, por exemplo, em sua organização. Ou mesmo que existem formas inegáveis de medir como sua empresa vive o “respeito” acima de qualquer outra organização.
- Valores acidentais: Essa categoria pode ser facilmente confundida com a de valores centrais. Para não errar, vale destacar que os valores acidentais, apesar de revelarem muito sobre a organização, não são intencionais, nem sempre são positivos e podem não representar toda a organização, mas parte dela.
Por exemplo: uma certa empresa de engenharia se especializou na entrega de projetos para autarquias. Trabalhar muitos anos nesta frente exigiu um formato de relacionamento mais político e centrado na rede de relacionamento dos indivíduos. Com isso, um valor acidental acabou sendo cultivado e, hoje, acaba por filtrar e definir muito do que é prioridade dentro da empresa, desde a contratação de pessoas até a forma como novos negócios são tratados.
As categorias nos ajudam a perceber que é possível usar a declaração de valores de forma efetiva para orientar comportamentos, diferenciar a empresa no mercado e, ainda, sustentar transformações desejadas. Mostra também que é possível ter, em uma mesma declaração, valores de mais de uma categoria, desde que isso esteja claro para a liderança, bem como as estratégias de interação com cada um dos valores.
Agora, reflita: os desafios vividos por nossas empresas atualmente estão relacionados às nossas estratégias ou aos nossos valores?
Explico: a mudança brusca de cenário costuma revelar e até testar o conjunto de valores centrais e acidentais de uma empresa. Desta forma, mudar a estratégia para lidar com a mudança é apenas uma parte da missão das lideranças. É preciso pensar também sobre quais valores sustentam os comportamentos que nos fizeram chegar até aqui e também sobre aqueles que nos ajudarão [ou não] a superar os desafios.
E como fazer os valores ajudarem de verdade?
Um conjunto de valores só vai fazer diferença se for autentico. Mais ainda, se for vivido, de fato, no dia a dia do trabalho. Para isso, é preciso que sejam uma prioridade para os líderes, seja incluindo a discussão em reuniões de gestão ou mesmo associando os comportamentos inerentes nas avaliações de desempenho.
Para ser efetiva, uma declaração de valores deve envolver toda a força de trabalho, considerando as diversas traduções e explicações que tais palavras precisarão para serem entendidas. Funcionários podem ser convidados a discutir ou interpretar valores e princípios em conjunto com seus pares, ajudando a garantir o alinhamento e a correta interpretação. Gosto muito de lembrar como a Comgás da minha época de estagiário criou um ritual que exigia que todas as reuniões da empresa fossem iniciadas discutindo um caso de segurança, um valor central da companhia.
Os princípios devem ser codificados, explicitados, transmitidos por escrito e revisados regularmente para garantir que as pessoas os compreendam e se lembrem deles. Porém, devem, também, orientar as escolhas da liderança de forma inconfundível, inspirar a estrutura organizacional, os modelos de gestão e também os documentos e políticas do negócio, desde o acordo de cotistas até a integração de novos funcionários.
Sobre esse tema, pode ser que goste também deste nosso artigo sobre como conquistar o comprometimento do time em iniciativas diversas. Para ler, acesse aqui.
Um cliente nosso, por exemplo, precisou alterar sua política de contratação ao estabelecer a diversidade como um dos valores aspiracionais. Para isso, decidiu criar formatos de contratação que diminuíssem os vieses inconscientes, iniciou diversas ações afirmativas na área de recrutamento e investiu na capacitação das lideranças sobre o tema.
As declarações sobre valores e princípios invocam um propósito superior, uma missão que vai além das tarefas diárias e indica um serviço à sociedade. Esse propósito pode se tornar parte da marca da empresa e uma fonte de diferenciação competitiva, mas pode também se tornar um elefante branco [ou um mero quadrinho pendurado na recepção].
É por tudo isso que a vivência é tão importante quanto a boa escolha. Ações que refletem valores e princípios – especialmente durante escolhas difíceis – tornam-se a base para histórias icônicas que são fáceis de lembrar e recontar, reforçando para os funcionários e para o mundo o que a empresa representa no mundo. Coisa incrível de desfrutar, não?
Anderson Siqueira é CEO e fundador da Consense educação para as relações, especialista em psicologia organizacional e governança corporativa.