Trabalhar com pequenas e médias empresas nos dá a oportunidade de conhecer e até conviver com muitos idealizadores de negócios. São pessoas dos mais variados segmentos, das mais diferentes origens técnicas, geográficas e sociais. Em muitos destes casos, o negócio é dirigido não por um, mas por dois, três ou até mais indivíduos. Pessoas que, além de pais, mães, filhos e amigos, são também sócios. Parceiros que decidiram empreender dividindo o esforço por meio da sociedade.
Porém, entretanto e todavia, nem tudo são flores, convenhamos. Nestes anos de experiência já vimos os mais variados tipos de sociedade: as que funcionam muito bem, as que andam aos trancos e barrancos, as de harmonia muito delicada… Infelizmente, também vimos muitas que não conseguiram funcionar e se tornaram cenários de guerra, geradoras de tristeza, frustração e raiva.
O fato é que conhecemos poucas sociedades conscientes de seu papel e necessidades, que investem tempo na qualidade de seu funcionamento ao mesmo tempo que investem na acurácia técnica de seus membros. Uma constatação perigosa, pois uma boa sociedade se alimenta da busca e manutenção constante de seu alinhamento.
E essa é a palavra chave deste artigo, o segundo de nossa série de textos sobre fracasso nos negócios. Dedicado a refletir sobre os prejuízos que a falta de alinhamento entre sócios pode trazer para uma empresa e levá-la, a qualquer momento, ao fracasso. Já adianto o pedido de que se você gostar do artigo e conhecer alguém que seja sócio de alguma empresa, compartilhe esse texto com essa pessoa. Além de ajudá-lo a refletir sobre o tema, você estará contribuindo com a manutenção do nosso ecossistema de conteúdos.
Segundo Anderson Godz, no livro “Governança e nova economia”, a maioria dos negócios falha, não porque os produtos ou ideias são ruins e sim por conta do desalinhamento entre os sócios. Uma afirmação forte, mas que combina com minhas percepções após quase dez anos de consultoria na área de cultura e governança. Adicionalmente, de acordo com o SEBRAE, 60% das empresas brasileiras fecham antes de completar cinco anos e, segundo o serviço, um dos motivos é a falta de alinhamento entre sócios.
Alinhamento entre sócios não é sinônimo de harmonia
Uma primeira questão que eu gostaria de levantar aqui é o fato de que muitas pessoas fazem uma pequena confusão sobre o termo alinhamento. Acreditam que se trata de uma outra palavra para “consenso” ou mesmo para “harmonia”. Como se o objetivo fosse alcançar um estado de tranquilidade e concordância eterna entre os sócios. Isso é um equívoco grave, pois excesso de harmonia e consenso são, na verdade, prejudiciais para o negócio.
Este pensamento é reforçado por Patrick Lencioni no livro “A vantagem decisiva”. Para ele, alinhamento significa criar tanta clareza que praticamente não haverá espaço para confusão, desordem e disputas desnecessárias. Além disso, em outros trabalhos, o autor reforça a importância da coesão entre os líderes [sócios neste nosso recorte] por meio do cultivo da confiança e também da clareza.
Ou seja, alinhamento não tem nada a ver com concordância, consenso ou harmonia, mas com uma busca constante por clareza e confiança. E, para isso, é preciso tempo em quantidade e tempo de qualidade, pois confiança e clareza são construções intencionais e não adventos do acaso. Mais ainda, elas servem de terreno fértil para que conflitos e discussões calorosas aconteçam para o bem do negócio, sem a contaminação da politicagem e do ego.
E só pra ressaltar a importância disso no nível societário. Muitos sócios atribuem a desordem de suas empresas a uma postura comportamental individual das pessoas do time, sem perceber que jamais será possível conquistar alinhamento sem que eles próprios construam um nível exagerado de confiança e clareza entre si, na sociedade.
Já presenciamos inúmeros grupos de sócios que iniciaram suas jornadas com muita energia, mas se prepararam muito pouco para as mudanças que o tempo e as circunstâncias trariam para a relação em si. Cuidaram muito da empolgação inicial necessária para se juntarem, mas esqueceram que uma sociedade precisa durar e, para isso, é preciso construir clareza e confiança.
Cuide da qualidade da confiança de sua sociedade
Para fazer o teste sobre a qualidade da confiança entre você e seus sócios, é preciso pensar sobre questões que vão além do trabalho. A confiança pode ser entendida como o sentimento gerado pela certeza de que o outro age com boas intenções e de que não há motivos para se ficar na defensiva ou ter reservas na relação com ele. Isso significa mais vulnerabilidade do que perfeição.
Um dos primeiros passos para se construir confiança é aprofundando o conhecimento que você tem sobre o seu sócio [e vice-versa]. Exemplos: Quais são as aspirações, medos e incertezas mais frequentes? Você saberia contar como a relação dele com o negócio mudou no decorrer dos anos? Saberia descrever os interesses pessoais dele? Como ele prefere trabalhar e quais são suas prioridades de vida, princípios e valores?
Saber as respostas para estas perguntas é um bom caminho inicial. O mesmo Anderson Godz, que citei acima, criou uma ferramenta chamada Canvas de governança, que serve de guia para uma conversa profunda entre sócios. O material é um dos utilizados aqui na Consense em nosso trabalho de Governança Societária. Vou deixar um link com uma versão do material e do nosso trabalho de alinhamento de sócios aqui. Resumindo, a ferramenta propõe uma conversa que esclareça valores, prioridades, regras de participação familiar, questões éticas e até de remuneração.
Trabalhar a confiança é investir constantemente no aprimoramento do diálogo e na saúde da relação societária. É ter a consciência de que nem só de boa vontade e competência vive uma empresa, mas também de uma boa governança, bons sistemas de gestão e da constante adaptação diante das transformações de cenário e mercado.
Por isso, quero destacar um outro ponto: alinhamento é um processo.
Busque a clareza por meio de um processo de alinhamento entre sócios
Já dizia a canção “tudo muda o tempo todo no mundo”. Mudam as prioridades; as experiências e vivências, sejam boas ou ruins; o cenário e o mercado; os desejos e as vontades. O ponto é que a maior constante dos negócios é a mudança. E quando um grupo de sócios não cria um processo constante para estar na mesma página, cedo ou tarde, haverá desalinhamento e os resultados serão afetados por isso.
E note que não apenas os grandes desalinhamentos são um problema. Os pequenos também são. Vejo que muitos sócios, após anos juntos, passam a relevar pequenos desalinhamentos entre si – seja por preguiça, ou por cansaço. O problema é que até as menores diferenças podem ser transformadas em grandes problemas para a execução do trabalho na operação. O destaque vai principalmente para discrepâncias conceituais, que afetam muitas variáveis do negócio.
Por isso, é fundamental tornar a busca por clareza um processo, isto é, torná-la parte do trabalho diário da sociedade. Isso pode ser feito por meio da realização de reuniões periódicas, onde os sócios discutem temas relevantes e garantem que o entendimento e os combinados são os mesmos, até as discordâncias, impedindo que o desalinhamento afete decisões em outros níveis da organização.
Um exemplo: imagine uma dupla de sócios de uma média empresa com pouco mais de 30 anos. Ambos são atuantes no dia a dia do negócio. Historicamente, todas as vezes que assuntos relacionados a investimento surgiam, os sócios não chegavam a um acordo consistente e acabavam desistindo de se aprofundar na conversa. Com o tempo, as percepções diferentes afetaram os rumos que o negócio tomou, pois além de não se resolverem, cada um foi cristalizando a própria visão sobre como o outro vê o assunto e diminuindo o engajamento em novas conversas.
Após anos neste ciclo, a empresa acabou se desenvolvendo de uma forma bipartida. Os departamentos gerenciados por um dos sócios investem constantemente, enquanto que os liderados pelo outro, não investem. Existe uma clara diferenciação entre as pessoas do time de um em relação ao outro. Ao se comprar algo na empresa, surgem logo as regras de que aquilo tem a ver com uma equipe, e não com outra. Por fim, até mesmo grandes decisões de investimento acabaram sendo tomadas sem um claro alinhamento entre eles, gerando rancor e mágoa.
Note que é o pequeno desalinhamento lá do começo sobre as premissas de uso dos recursos financeiros da empresa que contribuíram para uma grande ruptura no negócio. E neste caso específico, o que sustenta as crenças de cada sócio é seu conjunto de valores, ou seja, muito mais difícil de mudar no passar do tempo. A reflexão que fica é: qual é o benefício de não se aprofundar nas discussões mais importantes do negócio ao longo do tempo?
O curioso é que ao se falar neste tema nenhum empresário se coloca como opositor da ideia de que é importante buscar alinhamento. Você, leitor, deve estar pensando quão absurda é a ideia de uma empresa dividida em duas partes como no exemplo. Não é? Porém, no dia a dia, poucos sócios estão dispostos ao cansaço e à perseverança necessários para se construir confiança, clareza e alinhamento.
Use o conflito de agência a seu favor
Existe um termo na área de governança denominado conflito de agência. Resumidamente, tem a ver com a tensão existente entre os interesses de um executivo no comando de uma empresa e seus acionistas. No caso do executivo, seus interesses costumam ser de curto e médio prazo, como seus bônus, remuneração e o reconhecimento pela execução do trabalho. No caso dos acionistas, em geral, seus interesses são de longo prazo, ligados à perenidade e longevidade da propriedade.
Todos os negócios vivem esse dilema, mesmo aqueles que possuem sócios atuantes também como executivos [funcionários]. O ponto é que nestes casos a fusão existente entre o papel de sócio e o papel de funcionário elimina o benefício que existiria na relação destes papeis separados. Porém, é possível usar esta diferença de papeis para dar mais clareza e facilitar a busca por alinhamento.
Sócios não são funcionários, são agentes gestores da propriedade de um negócio, seu capital e objeto social. Um sócio deve pensar sobre o futuro desse patrimônio, definir as regras do jogo corporativo, pensar nas múltiplas riquezas geradas pela organização e zelar pela saúde do sistema organizacional na linha do tempo. Já um executivo, mesmo que seja a mesma pessoa, deve garantir o cumprimento dessas premissas, executar o propósito da organização, cumprir suas metas, objetivos e zelar pela cultura organizacional.
Note que quando uma pessoa confunde estes papeis se cria um conflito no processo de tomada de decisão. E em muitos casos, a ausência de definições claras de papel e responsabilidades, tanto societários como organizacionais, compromete a capacidade de se obter os benefícios de cada um destes agentes. No que tange o alinhamento, se torna mais um empecilho, pois muitos sócios se desalinham em temas que sequer estão na alçada de um sócio discutir. Ou seja, assuntos operacionais ou de nível gerencial que, ao se delimitar e clarificar, deixariam de ser problema dos sócios e se tornariam questões a serem resolvidas por quem tem autonomia para isso.
É por isso que reforço a importância de que sócios mantenham momentos recorrentes para buscar alinhamento. Seja para falar sobre os resultados do passado ou sobre o que sonham para o futuro da organização. Seja para discutir as premissas nas quais serão baseadas todas as decisões da empresa. É preciso investir energia se conhecendo e dialogando sobre seus métodos de pensar e de se comunicar. Este é o melhor caminho para se compartilhar intenções e visões, e alinhá-las ao que é melhor para o negócio e para o corpo societário.
Definitivamente, investir em clareza, confiança e alinhamento entre os sócios deveria estar entre as prioridades de todos os negócios. E se você chegou até aqui, deve estar pensando sobre os inúmeros benefícios de um ambiente onde confiança e clareza superam a falsa harmonia e a complacência comuns de relações societárias desalinhadas. Empresas aonde ideias e princípios são discutidos de forma calorosa para o bem do negócio como um todo, o tempo todo. Certamente, são estas organizações que darão pouca chance para o fracasso chegar. Faça o teste.
Anderson Siqueira é fundador da Consense, especialista em DHO, governança corporativa e psicologia organizacional.