Dia desses assisti a um trecho da novela “do comendador” [Império, o nome certo] e me prendi a uma cena interessante de quando a nova filha dele [desculpe, não lembro o nome] está iniciando seus trabalhos na empresa da família. A história não podia ser mais próxima do mundo real e do universo de uma empresa familiar. Uma novata enfrentando as barreiras culturais e políticas daquilo que se configurou como norma e padrão dentro do negócio.
Dados do IBGE indicam que 90% das empresas brasileiras tem perfil familiar. Desta forma, elas chegam a representar cerca de 65% do PIB e a empregar 75% dos trabalhadores do país. E, não apenas em casos consanguíneos como o que vimos na novela, situações conflituosas e políticas fazem parte do imaginário deste perfil de empresa. Tenho certeza que você já viu de perto uma situação assim.
O problema é que apesar de comum isso não é bom. E quem mais sofre com esse tipo de politicagem, claro, é a organização, que por meio de sua cultura se fecha e rechaça qualquer coisa que desestabilize o status quo vigente. Com o tempo, e sem atenção, o novato vira velho e as coisas voltam para seu lugar comum. Sem inovação, sem excelência e sem o risco natural do conflito e da adaptação.
Em momentos assim é possível acreditar, como fez o comendador, que intervenções diretas são suficientes para destravar a situação. Porém, esse tipo de ação isolada apenas reforça o padrão centralizador e dependente da empresa em seu fundador. E, neste texto, quero destacar dois aprendizados importantes, que podem ajudar você a eliminar a politicagem e avançar para relações empresariais mais maduras.
Sem confiança não existe equipe
A base para qualquer trabalho em equipe é a confiança. E ela não acontece naturalmente e por acaso, mas intencionalmente, com ações concretas no decorrer do tempo. É preciso escolher pela confiança a cada passo dado, especialmente a liderança, que tem papel fundamental na formação da cultura do negócio.
A ausência de relações fortes de confiança impede que conflitos saudáveis e calorosos aconteçam de forma efetiva e transparente. E é na qualidade dos conflitos que reside muito da capacidade de uma equipe de produzir algo bom, se comprometer e trabalhar em conjunto. Sem confiança, sobra confronto e briga de egos, ou seja, politicagem. Um ambiente onde as pessoas mais se atacam ou se protegem do que cooperam entre si.
Investir em confiança vai na contramão de permitir politicagem e obscurantismo. Tem a ver com eliminar as sombras que impedem as pessoas de partirem do pressuposto de que todos estão ali para contribuir. E este é um dos exercícios mais fundamentais a serem conduzidos pelos fundadores: cultivar um estado de confiança entre seus liderados.
No caso da novela, fica evidente que a filha foi lançada em um ambiente hostil, sem confiança e cheio de competição e ego. Seu trabalho de “auditar” a alta direção ganhou status ainda mais inquisidor por conta do contexto insalubre daquela empresa familiar. E isso mostra por que a ação isolada do comendador não resolveu o problema central, que era a ausência de confiança e de disponibilidade para confiar.
Segundo Patrick Lencioni, escritor americano sobre gestão, trabalhar em equipe é uma escolha estratégica. Não é um estado natural de um grupo de trabalho.
E isso é muito importante de se reforçar: O fato de estarem juntos, de terem sido contratados pela mesma empresa, de se conhecerem a muito tempo, e até mesmo de serem da mesma família, não torna, por si só, um grupo de líderes uma equipe de liderança. Equipe se constrói. E a confiança é a base dessa construção.
Não espere um problema para cuidar da cultura
Muitos líderes, especialmente em uma empresa familiar, vão empurrando com a barriga aquelas conversas difíceis. “Ahh, esse é o jeito do meu filho” / “Puxa, como vou falar isso pra minha esposa”. E com o tempo os jeitos dos familiares ou líderes de confiança vão se tornando o jeito da organização. Até que não há mais espaço produtivo de mudança e tudo fica ainda mais difícil.
No caso do comendador isso é levado ao extremo. Uma família desestruturada, com comportamentos visivelmente antiéticos e egocêntricos. Nada de ação. O inaceitável se torna a ordem vigente e as pessoas passam a acreditar que aquilo é normal. O trabalho da “novata”, minimamente normal, vira uma exceção, um exagero, algo fora do padrão.
Como diria Jeff Bezos, fundador da Amazon, a cultura acontece diariamente, nos pequenos eventos e nas ações. Ou seja, quando um líder não age, ele também está dando um recado a favor de alguma coisa. Esperar as coisas ficarem muito ruins pode levar os rumos do negócio pra uma encruzilhada difícil de sair. Como na anedota do sapo escaldado, a água pode estar quente demais pra permitir a fuga.
Cultura é assunto de primeira ordem na agenda de quem está no comando de uma organização. Chame essa conversa com antecedência, discuta com seus líderes e familiares os comportamentos e valores que devem sustentar as dinâmicas empresariais. Combine formas de acolher a família de modo que a empresa não seja prejudicada. Para ler mais sobre como iniciar transformações culturais, pode se interessar por este outro artigo aqui.
O simples ato de dialogar periodicamente sobre este tema, colocará a cultura do negócio como um recurso estratégico a ser influenciado pela liderança. E é desta forma que se pode expulsar politicagem dos negócios familiares. Reconfigurando os princípios que regimentam as relações dentro da empresa de forma consistente e profunda.
Ser uma empresa familiar não é sinônimo de algo ruim. Do contrário, são de empresas deste perfil que histórias de contribuição, paixão e propósito nascem. São também destas culturas corporativas a compaixão e o acolhimento, tão relevantes para a longevidade de um negócio. Por isso, cuidar da cultura e da confiança é tão importante, pois são os elementos chave que tornarão possível a execução da estratégia e da missão do negócio.
Na história do comendador, cheia de drama e romance, não sei bem o que acontece depois. O que eu tenho experiência é na observação empírica aqui no trabalho da Consense de quase dez anos apoiando empresas familiares. E é fato comprovado que a falta de confiança e a falta de atenção aos assuntos de cultura podem, além de minar o negócio, criar feridas incuráveis na família. Fica aqui o convite para fugir desse enredo conhecido e construir algo novo.
Anderson Siqueira é fundador da Consense, especialista em DHO, governança corporativa e psicologia organizacional.