Iniciamos a reunião comercial como sempre: boas vindas, falamos sobre amenidades da semana [que nem são tão amenas, né? pandemia, isolamento, problemas econômicos], mas, estes têm sido nossos dias. A demanda do cliente tinha um nome prévio: treinamento para a área comercial. Conversa vai e conversa vem, fui percebendo que a demanda era mais complexa e envolvia uma verdadeira transformação cultural na área. Nessa hora, todo cliente se assusta: mas, com assim? Eu queria algo simples… Isso aí é muito difícil!
Pois é, transformar a cultura de uma empresa é um processo mais complexo do que realizar um treinamento de técnicas de vendas. Porém, partindo-se do princípio de que esse pode ser o melhor caminho dentro de determinado contexto, é tão difícil assim mesmo? O que nos deixa amedrontados diante de situações como as que nos pedem esforço extra para mudar a cultura do negócio?
Nesta empresa, por conta de um processo jurídico, existem restrições de mercado que impedem a venda de alguns produtos. Com a restrição, foi necessário adaptar o papel do time de relacionamento para um trabalho mais focado em revenda. Todavia, esse time de gestão de contas – há muito tempo acostumado com o trabalho focado em relacionamento – não desenvolveu expertise para o trabalho comercial mais agressivo. Além disso, não existe ainda muita clareza sobre a nova estrutura de comando da área, existem algumas sobreposições de função e novas lideranças, os processos de atendimento e venda são empíricos e, muito relevante, paira um clima de medo e ansiedade com as mudanças.
Claro que, a princípio, pensar em treinar essas pessoas em melhores abordagens comerciais faria sentido. A curto prazo, um bom remédio para dar segurança e método de trabalho. Porém, a história é conhecida, sem um ambiente que favoreça o cumprimento da nova estratégia de trabalho, as técnicas não farão milagre. Como diria Peter Drucker, na frase mais repetida aqui neste Blog da Consense, “a cultura come a estratégia no café da manhã”. E neste caso, já estava com a faca e o queijo na mão.
A cultura influencia a tudo e a todos. Tudo e todos influenciam a cultura.
Já parou para pensar na quantidade de energia que se gasta na empresa tentando empurrar estratégias e ações que não engatam? Se fosse possível medir essa energia, quanto daria por aí na sua empresa? Na maioria das vezes, uma energia dedicada à pressão, ao controle, ao conflito e ao medo. Olha um exemplo para ilustrar: sabe aquela energia gasta para orçar três empresas de treinamento, divulgar, fazer acontecer e obter um nada de engajamento das pessoas? Ou pior, um super engajamento com prazo de validade de 3 meses?
Pois é, uma frustração só…
São estes os momentos que deixam claro a força da cultura do negócio. E é por isso que gera ansiedade e medo falar sobre transformação cultural. Por que ela envolve mais do que um conjunto de ações de comunicação, mas um relevante processo de mudança de consciência das lideranças e de alinhamento entre seus valores, crenças e comportamentos com as práticas organizacionais e estruturas de gestão e governança.
Inclusive, caso queira se aprofundar, falamos sobre a mentalidade da liderança neste artigo aqui. O que eu quero destacar neste ponto é a importância de se pensar de forma abrangente os diversos desafios que vivemos nas empresas, abrindo espaço para que questões mais profundas e relevantes sejam notadas e, assim, consideradas. Não seria melhor poder considerar, de todas as variáveis, qual priorizar? Do que colocar energia apenas naquela que conseguiu enxergar?
Quando fazemos este exercício percebemos que existem conexões profundas, e as vezes, intangíveis entre elementos bem diferentes da empresa. Como é o caso deste cliente que, nesta conversa, percebeu que boa parte da insegurança de suas pessoas estava na ausência de uma estrutura de gestão sólida. Ao entender que tais estruturas “dão chão” para os empregados, fica evidente que sua ausência promova mais ansiedade e medo do que coragem e realização. Um treinamento de vendas não resolve isso.
O primeiro grande passo para a transformação cultural
Segundo, Richard Barrett, um autor britânico que escreve sobre liderança e valores, um processo efetivo de transformação cultural só é possível quando se consideram três fatores: o alinhamento pessoal dos líderes, gerentes e supervisores; o alinhamento estrutural da organização; e o alinhamento de valores e missão dos funcionários.
O primeiro alinhamento proposto por Barrett é o alinhamento pessoal das lideranças. Segundo o autor, a transformação da consciência dos líderes é condição básica para qualquer transformação cultural, pois a cultura é um reflexo do nível de consciência dos líderes. Logo, para transformar a cultura, é preciso cultivar entre os líderes os valores que mais se alinham à cultura desejada e, também, os comportamentos alinhados com estes valores. Desta forma, se elimina o desalinhamento e a incoerência das lideranças.
O segundo alinhamento é chamado de alinhamento de estrutura por entender que a empresa possui um conjunto de valores e crenças declarado e/ ou oriundo das práticas comportamentais das lideranças [atuais e anteriores]. Neste caso, a busca por práticas alinhadas com esse conjunto de princípios permite que a cultura flua do nível pessoal e impacte a entrega para o cliente e sociedade. O essencial é que os processos, estruturas, práticas, discursos e estratégias estejam alinhados e coerentes com o conjunto de valores declarados pela empresa.
Por fim, existe o alinhamento de valores e de missão. No caso dos valores, a proposta é perceber a conexão existente entre os valores pessoais dos funcionários e os valores da empresa. No caso da missão, aquele que existe entre os diversos propósitos pessoais dos empregados e o propósito da organização. Parece bem desafiador, mas é desta forma que se garante que as pessoas percebem que a organização está num caminho alinhado com sua identidade vocacional e incentiva a todos que busquem se aproximar dessa identidade.
Mas, Anderson, quanto tempo acha que dura um processo de transformação cultural?
Gosto dessa pergunta por que ela opera no desentendimento sobre o tema. A cultura é um processo cíclico, e por ser assim, está em constante transformação. Não é um projeto a ser executado, mas um processo a ser gerenciado constantemente, buscando estes alinhamentos o tempo todo, já que as pessoas mudam, o mercado muda, a vocação do negócio evolui e o sistema não é estático.
Se você chegou até aqui, leitor, eu gostaria de destacar o que eu mais quero deixar gravado com este artigo: o primeiro passo para compreender o processo de transformação cultural está na identificação das necessidades de alinhamento para essa transformação. E para se identificar tais demandas, é preciso ter a mentalidade crítica de quem observa o sistema de forma abrangente e não binária. Quando surgir um problema ou um desafio em sua área, não olhe apenas para o problema, mas o destrinche, descasque e investigue.
Se o problema for técnicas de vendas, investigue o contexto desse pedido, como ele surgiu e quais as reais causas desta demanda. Se a questão for um comportamento indesejado dos líderes, reflita historicamente sobre tudo o que se relaciona com esse grupo. Eu posso garantir que esse comportamento o apoiará a entender quais são os pilares [valores e crenças] que sustentam os comportamentos [práticas e personalidades] que permitem aos problemas existir e resistir. Desta forma, o processo de transformação será mais fácil, garantindo integridade pessoal da liderança e a integridade organizacional.
Anderson Siqueira é fundador da Consense educação para as relações, especialista em desenvolvimento humano e organizacional e governança corporativa.