“Equipes com medo se protegem mais do que se importam com o trabalho. E eu acredito que é disso que nós, líderes, deveríamos ter mais medo: equipes que não se importam.”
Este é um dos argumentos finais do texto mais recente que escrevi sobre segurança psicológica – ou psicossocial – e sua importância para o futuro das empresas. [Para ler ou reler o texto completo, clique aqui.] Eu acredito fielmente nisso. A cultura do medo, sintomatizada pelo silêncio, é um dos fatores que mais compromete a potencialidade dos resultados nas empresas e precisa ser combatida, caso os negócios desejem permanecer relevantes na era do conhecimento.
Sendo um termo recente e complexo, a segurança psicossocial nos ambientes corporativos pode ser facilmente mal interpretada. Assim, antes de qualquer prática ou passo palpável, é preciso desmistificá-la. Os erros mais comuns são:
- tomar como uma iniciativa que está resumida ou direcionada à área de Recursos Humanos;
- entender como algo que pode ser facilmente resolvido com um (ou uma série de) treinamento(s);
- acreditar que é apenas uma resolução que busca atender as expectativas das equipes na busca por ambientes de trabalho mais acolhedores e sem alta performance.
Uma das principais estudiosas do tema e autora do livro The Fearless Organizations, Amy Edmondson, reúne quatro fatores importantes sobre o que a segurança psicológica não é:
- Não é sobre ser “bonzinho”, ou sobre criar um ambiente demasiadamente confortável para as pessoas. Ou, ainda, sobre todas as pessoas concordando o tempo todo. Combater a cultura do silêncio promove a capacidade das equipes de trocarem livremente suas ideias de forma produtiva, inclusive discordando umas das outras.
- Não é um fator de personalidade: a cultura do silêncio ou do medo não está ligada a fatores individuais de personalidade, como a introversão ou a extroversão, ou até características do caráter como a timidez. Pelo contrário, é um fator cultural que afeta todas as pessoas inseridas no ambiente, independente de suas particularidades específicas.
- Não é outra palavra para confiança: embora estejam conectados, os dois termos não significam a mesma coisa. A confiança é estabelecida no relacionamento pessoal, um a um, já a segurança psicológica está ligada a visão estabelecida do grupo sobre as consequências do risco interpessoal.
- Não é sobre diminuir os padrões/expectativas sobre performance das pessoas. Diminuir o risco interpessoal é, na verdade, o caminho para poder estabelecer metas mais ambiciosas e fomentar mais colaboração. Ambiente de trabalho sem segurança psicossocial adequada geram mais apatia e ansiedade do que performance.
Caso você tenha chegado até aqui com a intuição ou até com dados concretos de que na sua empresa é difícil lidar com os riscos psicossociais, não se desespere. É possível mudar e, com foco, estratégias assertivas e tempo, desenvolver um ambiente de trabalho com segurança psicológica e, consequentemente, mais aprendizado, inovação e humanidade.
Para apoiar, quero deixar duas reflexões que podem ajudar você a iniciar a jornada.
Líderes: os primeiros a cultivarem a segurança psicológica
Será sempre importante ampliar a consciência da liderança sobre seu papel como facilitadora dos processos de aprendizagem e inovação. Da mesma maneira, é na liderança que se apoiarão as estratégias de transformação cultural necessárias para o cultivo da segurança psicológica. Portanto, é preciso, antes de tudo, criar uma visão compartilhada sobre o ambiente que se deseja alcançar.
Para isso, é fundamental discutir de forma crítica e profunda quais atitudes são usualmente tomadas em casos relacionados ao erro, às novas sugestões e aos questionamentos, diretos e indiretos. Será preciso eliminar a percepção tradicional de que o líder é único responsável e dono das respostas e, após, criar uma nova visão na qual as pessoas são parte essencial do processo e os líderes facilitadores da execução.
Segundo estudos na área de neurociência nosso processo de aprendizagem acontece melhor quando nos sentimos seguros e livres de ameaças. Desta forma, para estarmos atentos às transformações do mercado, nos dedicarmos a estudar dados e informações importantes e, principalmente, para colaborarmos com diferentes perspectivas em prol de soluções, será necessário um ambiente de segurança psicológica.
Portanto, crie espaços de conversa com sua liderança e discuta abertamente como proporcionar segurança psicológica. Converse sobre o papel do erro como parte do processo de aprendizagem e sobre como o medo, a centralização e o controle são nocivos ao se tornarem instrumentos de gestão. Por fim, capacite sua liderança a fazer mais perguntas do que dar respostas, incentivando a curiosidade e, consequentemente, o pensamento crítico e aprofundado.
Outro aspecto igualmente importante está na criação de um ambiente legítimo de participação. E aqui é preciso investir fortemente na estrutura adequada de colaboração – não tem a ver apenas com reunir pessoas e pedir que trabalhem juntas ou acreditar que a maioria das decisões a serem tomadas precisa envolver o colegiado. É preciso cultivar espaços de fala efetivos, com ações que consolidem a colaboração como valor e processo organizacionais. Sobre esse tema, falamos mais em outro artigo, que você pode ler aqui.
Um exemplo prático interessante acontece em um cliente da Consense. Uma empresa de contabilidade, que iniciou um processo de desenvolvimento das lideranças sem treinamentos tradicionais. Na verdade, em busca de apoiar a segurança psicológica, foram instituídas regras de participação nas reuniões de liderança, incentivando a participação de todos e diminuindo a centralização dos principais. Com o tempo, notou-se o aumento da participação pela segurança que se criou naquele time.
Como a estrutura pode apoiar a segurança psicológica?
A mudança de comportamento da liderança pode ser especialmente desafiadora quando se depara com problemas na estrutura do negócio. Afirmo isso por perceber nestes anos de trabalho que é comum existir interesse por parte da liderança em transformar o ambiente, mas a estrutura do negócio [seu organograma, seus processos e sua cultura], muitas vezes impede que isso aconteça. Portanto, além de investir no comportamento do líder é preciso investir no amadurecimento das estruturas de gestão.
Existe um equívoco comum em diversas iniciativas de desenvolvimento de pessoas ao centralizarem todos os esforços [e responsabilidades] sobre os indivíduos. Desconsiderando o caráter complexo dos ambientes de trabalho e as diversas variáveis relacionadas aos comportamentos individuais. O fato é que ao se negligenciar a estrutura e a cultura, muitas destas iniciativas não se concretizam e se perde a oportunidade de usufruir dos seus resultados.
Tome como exemplo um computador. É preciso existir compatibilidade entre o sistema operacional e os softwares instalados, do contrário, eles não irão funcionar. Da mesma forma acontece nas empresas: muitas iniciativas não funcionam por serem como softwares instalados em sistemas operacionais incompatíveis. Ou seja, é preciso mudar o sistema no qual a empresa opera para implantar novas formas de trabalho. Do contrário, qualquer ação será vista como um vírus e será eliminada.
Sabe aquele treinamento que muda as pessoas por três meses? E depois tudo volta a ser como era antes. Ou até pior? Pois então: a iniciativa é salutar e o treinamento realmente é bom, mas foi implantado em uma estrutura incompatível com seu desenvolvimento. Não há como ter sucesso desse jeito. Da mesma maneira acontece com a segurança psicológica. É preciso repensar a estrutura do negócio e sua cultura. Eles operam a favor da segurança psicossocial?
O fato é que na maioria das vezes predomina a existência de um emaranhado de relações políticas que reforçam uma autoridade centralizada e criam gargalos decisórios intransponíveis. Ou, em outros casos, desenhos estruturais que não correspondem à realidade, dificultando o trabalho das pessoas, incentivando a competição excessiva e promovendo conflitos interdepartamentais sem resolução.
Ou seja, estruturas que são tudo, menos seguras.
É preciso repensar as estruturas de gestão considerando a segurança psicológica. Refletindo sobre os valores do negócio, o propósito e suas estratégias. Seguindo pelo organograma, pelos papeis e atribuições das pessoas. Incluindo os diversos processos de trabalho, os sistemas e a governança. Todos devem estar alinhados e orientados para incentivar a segurança psicológica, inclusive prevendo quais serão as consequências da violação dela como premissa.
Quem assistiu à série Chernobyl, da HBO, pode ter notado como é importante repensar a estrutura e a cultura. Apesar dos comportamentos inadequados dos indivíduos do governo e da usina, não se pode eliminar também os traços culturais de medo e vergonha, componentes tanto da história russa como da cultura da usina. Fica claro como estruturas de gestão bem pensadas não podem evitar acidentes, mas a ausência delas certamente facilita que eles aconteçam.
O poder excessivo dado à executivos não funciona mais como se acreditava. As organizações e o mercado hoje são mais complexos e essas pessoas não têm condições físicas e mentais para lidar com a carga gigantesca de dados que a estrutura direciona a elas para processarem. A tentativa de fazê-lo só amplia o risco do autoritarismo e da negligência, fontes diretas de erros e acidentes, como em Chernobyl e em tantos outros casos. Novamente, onde há a necessidade de autodefesa, impede-se a colaboração de acontecer, mesmo em situações de risco.
Ainda com o objetivo de promover aprofundamento, fica a dica de leitura do nosso Guia sobre Estruturas de gestão. Seja qual o for o desafio relacionado, é importante considerar algumas premissas essenciais para se elaborar tais elementos. Para fazer o download do e-book, acesse aqui.
Para além do RH
A segurança psicológica é fundamental para o cultivo de um ambiente onde se pretende aprender, inovar e crescer de forma sustentável. Para chegar lá é importante se estabelecer caminhos que envolvam a estratégia, a estrutura e a cultura do negócio. Tarefas que não podem ser direcionadas apenas para a agenda da área de Recursos Humanos, mas devem ser encaradas como fatores institucionais. Responsabilidade de todos dentro da organização.
Quando existir comprometimento institucional com o tema, existirá também a abertura para mudanças estruturais que permitirão a verdadeira segurança psicológica de acontecer. De forma que todos os processos e pessoas sejam beneficiadas. Sem exceção e integralmente. Uma conquista realizada a partir do esforço de todas as áreas e níveis de influência.
Anderson Siqueira é CEO e fundador da Consense educação para as relações, especialista em psicologia organizacional e governança corporativa.